Memória e subversão em tempos de indignação e de incerteza
“Quero trazer à memória o que me pode dar esperança” (Lamentações 3.21). Estas palavras foram registradas na Bíblia hebraica, sob a autoria do profeta Jeremias, na forma de poemas sobre tempos de muita dor e desesperança. Apesar de todo aviso prévio quanto aos equívocos de governantes, especialmente as alianças espúrias que visavam interesses nada coletivos, no ano de 597 antes de Cristo. Jerusalém foi tomada pelo Império Babilônico (depois destruída) e boa parte da população foi deportada.
Jeremias está frustrado e fala em nome de Deus diante da situação catastrófica em que seu povo foi metido. Por isso ele recorre à memória das situações de dificuldade que sempre existiram em que houve resistência e superação. É dela que, segundo o profeta, vem a esperança.
É certo que memórias podem ser doloridas sim, e, por isso são, muitas vezes, voluntariamente apagadas e silenciadas porque trazem lembranças de dor. Recordo-me das tantas pessoas que foram violadas nas prisões da ditadura militar do Brasil, que não desejaram dar depoimentos à Comissão Nacional da Verdade, pois queriam manter as atrocidades sofridas no esquecimento. O trauma da tortura deixou marcas irreparáveis para muitos brasileiros e brasileiras.
No entanto, o chamado profético de Jeremias ecoa, em tempos de dor coletiva causada pelo presente catastrófico do nosso país e pela incerteza do futuro, para buscarmos na memória o que traz esperança. A beleza desta concepção está justamente no fato de a esperança ser um elemento dinâmico. Esperança é um motor de transformação. Anima. Impulsiona a um “novo tempo apesar dos perigos e dos castigos”, que “seja mais que vingança, seja sempre um caminho que se deixa de herança” (Ivan Lins/Vitor Martins).
Com base neste princípio, um grupo de formação cristã, do qual faço parte, criou o “Coletivo Memória e Utopia” para oferecer espaços de reflexão que sejam animadores e facilitadores de processos nos quais a recuperação da memória coletiva atue como recurso importante para a construção da justiça e da paz.
O Coletivo afirma que neste momento em que a discussão ambiental assume caráter de emergência global e que há um claro agravamento de posições conservadoras na política, com o avanço de modelos excludentes, precarização do trabalho e dos serviços de saúde e educação públicas, avanço da xenofobia e de tantos outros preconceitos, tudo isso com um claro alinhamento de segmentos cristãos, é mais do que tempo de meditar, discutir e propor!
O grupo olha com especial preocupação as ações do atual governo federal do Brasil, que expressam um nítido projeto de promoção do esquecimento e de revisão da história do país. A intenção parece ser esconder feridas abertas, nunca saradas e cada vez mais latejantes, em especial aquelas relacionadas aos crimes da ditadura militar. Ao mesmo tempo buscam minorar, cada vez mais, o lugar e o protagonismo dos movimentos sociais e suas conquistas históricas visando a democracia em seu sentido amplo.
O grupo reconhece, com tristeza, que deve ser objeto de atenção e de inquietação o papel exercido por parcela das igrejas brasileiras nesse processo de apagamento da história, de amnésia social e de reforço do obscurantismo e das culturas de violência e ódio. Um antitestemunho que nega os valores e os princípios cristãos da paz, da justiça, do amor e da tolerância.
O Coletivo Memória e Utopia foi formado justamente no contexto desta crise. O grupo acredita no valor da memória não só como recuperação importante do passado, mas também como utopia, seguindo a inspiração do profeta Jeremias. É o olhar para o passado como algo que alimenta o presente e o futuro.
Por isso, o Coletivo reafirma o que diz o teólogo Rubem Alves: “A memória tem uma função subversiva. (…) Talvez que a memória das esperanças já mortas seja capaz de trazê-las de novo à vida, de forma que o passado se transforme em profecia e a visão do paraíso perdido dê à luz a expectativa de uma utopia a ser conquistada”.
O Coletivo Memória e Utopia lança publicamente sua proposta, neste sábado, 7 de março, com um evento intitulado “Memória e Esperança: anos 80 em foco”. A ideia é abrir o caminho com uma reflexão que celebra os 40 anos dos anos 1980, período que marcou a adolescência dos integrantes e toda a sua formação para a vida cidadã. Com isso afirma:
“Sobrevivemos a um tempo em que o cinto de segurança não era obrigatório, às grandes viagens de ônibus (aviões eram para bem poucos de nós), a vestibulares complicadíssimos. Sem rede de computadores, TV paga, celulares, Netflix, Google, nada disso, acompanhamos as transformações da sociedade e estamos aqui para refletir o quanto tudo isso nos fez ser quem somos hoje. E mais, o quanto a reflexão sobre aqueles tempos pode contribuir para a formação das novas gerações. Como pais, mães, profissionais, ativistas que somos temos uma responsabilidade com esse conteúdo. Nosso desafio é, à luz de nossa fé, tornarmos essa memória disponível da melhor maneira possível”.
Que assim seja!
Fonte: Carta Capital/Diálogos da Fé/04/03/2020