Caminhando entre o sol e a lua na Era do Coronavírus
Antigamente, muito antigamente, o tempo teria sido marcado poeticamente, ou fenômenos cósmicos, ou sociais, ou míticos. No dia em que a lua correu e alcançou o sol, ou no ano em que a primeira mangueira surgiu repleta de frutos, ou na manhã em que Potira não viu Itagibá voltar. Pois bem, ontem foi o dia em que dei um passeio pequeno pela cidade grande, na Era do Coronavírus, modo épico de nomear tempos indefinidos, meio tragédia, meio comédia metida a farsa.
O sol de meio dia nos acompanhou por uma peregrinação econômica, comprar comida e fazer transferências bancárias, e descobrir que o mundo pode mudar, mas as filas continuam, com algumas mudanças. Há mais idosos nas filas e o medo que tínhamos de mascarados, agora é de quem não usa, tempos em que uma mulher de burca nos deixa extasiados e em paz. Porque o medo é a emoção do momento, sinto medo de andar, de parar, de tossir, de coçar, de doer, de cansar, de respirar. E depois de tudo, o medo de não ter sintoma nenhum, do perigo de ser assintomático.
Pois bem, Eu e Zailda, minha filha, nos preparamos a manhã inteira para dar a nossa saída, meio preocupados, meio empolgados. Entendia que precisava me disfarçar o mais possível de não-idoso e passei um tempão tirando a barba branca, meio grande, meio irregular, meio ridícula, mas eu gosto. Deixar a barba crescer foi uma decisão tardia, pelos fins dos cinquenta e inícios dos meus sessenta anos, e foi um alívio assumir um rosto com pelos, dispensar os estojos e cremes de barbear de cada dia. Disse-me um amigo que desisti de tentar ser talentoso e optei por ser exótico. Em casa, passeamos pelo celular e computador e depois do almoço saímos.
As ruas e as poucas e pequenas lojas abertas ainda eram razoáveis, mas o grande supermercado, com o seu ar-condicionado potente, garantindo o prolongamento da vida de vírus e bactérias, e a grande quantidade dos macro-organismos da espécie humana, talvez em extinção, era quase aterrorizante. Usar máscaras e respeitar distâncias não estão ainda acontecendo de modo contundente, hábitos construídos por tanto tempo não são fáceis de serem desinstalados de repente. Estamos na estranha era em que ama mais o próximo quem mais se afasta. E nós os latinos, famosos por se esfregar e abraçar, talvez tenhamos de adotar o costume oriental da leve inclinação à distância. Claro que no confinamento de casa, manter distância é um dilema que em alguns momentos não dá. Um casal amigo está tentando aprender a transar a um metro e meio de distância, mas confessam que ainda não conseguiram. Por enquanto, usam álcool gel nas partes.
Com boletos e cartões bancários nos bolsos, encontrei uma lotérica com filas razoáveis, três gerais e duas preferenciais, superlotadas de mascaradas e desmascarados. Não tive coragem de optar e assumi meu lugar na fila de idosos, mesmo sabendo que essa história de fila preferencial foi estratégia de discriminação e, com pouca fila pra tanto idoso, o fluxo será sempre mais devagar. Fiquei à distância de três metros para não assustar a humanidade e demorou, mas fui atendido. Então voltei pra casa, feliz, com a sensação de ter feito mais exercício do que o meu cardiologista recomenda. Minha filha me mostrou a lua na janela, grande e linda. Registrei nas minhas anotações: Na Era do Coronavírus, no dia da superlua.
Recife, 08 de abril de 2020.