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O que significa ser cristão em um mundo de 40 milhões de escravizada(o)s?

O que significa ser cristão em um mundo de 40 milhões de escravizada(o)s?

Me causou um grande espanto toda a controvérsia gerada pelo sermão do pastor Ed René Kivitz. O pastor afirmara que a Bíblia deveria ser atualizada, no contexto de um sermão eivado de elementos que quase ninguém tem ouvido nos sermões dominicais. Ao tratar das perspectivas possíveis na leitura da carta de Paulo a Filemon, ele deu exemplos que demonstram a necessidade de real transformação em processos de produção que causam danos ao ambiente e aos trabalhadores, como o caso da produção de cana-de-açúcar e a incrível e cruel realidade da escravidão e das opressões que atravessaram a história dos primeiros cristãos e ainda está presente na sociedade atual.

Tudo isso ficou em segundo plano nas reações de muitos cristãos e muitas cristãs, especialmente nas redes sociais. Muitos se manifestaram, alguns voraz e violentamente contra a temática citada da necessidade de atualizar a Bíblia. Ficou claro o quanto o movimento cristão evangélico conservador pode ser extremamente violento, sem ao menos se dar conta disso. Afinal, qualquer um que se levante contra um aspecto qualquer que cheire a uma diferença ou divergência frente à tônica discursiva predominante nesse meio, torna-se facilmente alvo de condenações e de julgamentos. Logo se iniciam linchamentos virtuais em nome de Deus, como uma espécie de assassinato de reputação e extermínio simbólico. Adjetivos e expressões como “herege”, “enviado do diabo”, “pastor enganador”, logo emergem e são lidos com muito espanto nas redes sociais.

É triste constatar que boa parte de nossos irmãos e irmãs se veem na missão de defender a honra da bíblia e proteger um tipo de cristianismo a todo e qualquer custo. A ideia é que, em nome da defesa das verdades cristãs, tudo valeria a pena, afinal essa é a batalha da fé. O rolo compressor em nome da ortodoxia é uma maquinaria discursiva disposta a passar sobre qualquer pessoa, sobre qualquer história, qualquer líder, qualquer igreja que supostamente fira um princípio entre eles valorizado.

Sou parte da igreja evangélica brasileira. Fui criado num meio extremamente conservador. Agi muitas vezes de modo similar e compreendo um pouco as causas desse comportamento. Sei o quanto se torna uma prisão, que até mesmo rouba a leveza e a beleza de experimentar a vida divina em nós e nos outros. A espiritualidade se torna belicosa e sempre disposta a se engajar nas “cruzadas gospel”.

Eu diria que faltam mais espaços de reflexão em nosso meio ou mesmo interesse neles, que nos propiciem mais consciência social e crítica de modo a ampliar as lentes capazes de nos fazer enxergar a realidade de modo menos restrito e condicionado pela subcultura evangélica conservadora. Ninguém pode negar, “nossa fé” foi colonizada pelo conservadorismo e é difícil lidar com essa realidade, especialmente porque ela busca anular a experiência das pessoas de fora desse âmbito, julgam-nas como demoníacas, como erradas e condenadas por Deus.

Como substrato dessa tentativa de estabelecer ou impor as “verdades” cristãs, existe uma soberba muito grande porque as pessoas são forjadas a pensar sobre si mesmas como portadoras exclusivas de Deus. Logo se cria a ilusão de que podemos ser detentores do Espírito de Deus, e logo pensamos que só nós estamos do lado de Deus. Mas devemos ficar alertas. Como diz o pastor Tony Campolo, quando a gente traça uma linha no chão e diz que Deus está do nosso lado e que os que estão do lado de lá da linha não têm Deus, há uma chance muito grande de Deus estar do lado de lá. Pode ser que Ele esteja justamente do lado daqueles que julgamos como os que Jesus jamais se aproximaria.

O que me espantou demasiadamente nesse episódio do pastor Ed René Kivitz foi o fato de que diante do sermão – que de certa forma fala da realidade da escravidão contemporânea – pouca gente se importou com o que de fato me parece ter sido a tônica da pregação: a necessidade de sabermos ser cristãos diante da realidade das opressões. De fato, nosso mundo é cheio de realidades de restrição de liberdade e de negação da dignidade das pessoas.

É importante lembrar que 40.2 milhões de pessoas vivem em situação de escravidão contemporânea no mundo atual, e ao invés de debatermos o que significa a expressão “atualizar a Bíblia”, ficou evidente que precisamos atualizar a nossa experiência com Jesus de Nazaré. A igreja evangélica brasileira parece devota de verdades doutrinárias, mas tem pouca identificação com a figura real e viva de Jesus Cristo. Por isso, precisamos urgentemente atualizar a experiência com o Espírito revolucionário e amoroso de Deus.

Deixo aqui uma pergunta: o que de fato significa ser cristão no mundo em que 40.2 milhões de pessoas são submetidas a trabalho forçado, escravidão por dívida, servidão moderna e superexploração? Essa realidade atinge países do Sul e do Norte global. Atravessa países ricos e países pobres. A exploração do sistema capitalista perpassa o globo como uma potestade dominadora e escravizadora, enquanto se perde tempo atacando alguém com histórico ilibado na pregação do evangelho. Esse foi um exemplo de uma distração frente à real necessidade de perceber onde deveríamos empregar nossos esforços e nosso coração. Deveríamos estar na frente da batalha da erradicação da escravidão contemporânea, seja na nossa cidade, no Brasil ou ao redor do mundo. Deveríamos estar enfrentando localmente esse problema global.

Repito a pergunta: o que significa ser cristão num País em que 54 mil pessoas foram libertas do trabalho escravo contemporâneo nos últimos 25 anos? O que significa ser cristão no País de mais de 14 milhões de desempregados? Como podemos chamar Deus de Pai se não enxergamos na nossa casa comum a vida vulnerabilizada, maltratada e oprimida de nossos irmãos e irmãs e disso não fazermos uma frente central da pregação do evangelho e de demonstração do amor de Deus que o evangelho anuncia? Qual o sentido da nossa fé diante das marcas históricas de 400 anos de escravidão negra e de herança sociocultural do racismo estrutural?

Não pretendo dar resposta a essas perguntas. Eu teria algumas pistas, mas essa tarefa é coletiva e não individual. É algo que exige um compartilhar e um conhecimento teológico produzido no compromisso com o outro, no compromisso com a sociedade. Uma resposta que reflete o nosso engajamento com as realidades do Alto… afinal, como vamos comprovar que temos compromisso com os valores do alto (justiça, amor, alegria, santidade etc.), se em vida convivemos harmoniosamente com tudo que é o seu oposto?

É hora da igreja brasileira dobrar os seus joelhos e fazer dos problemas do mundo a causa principal da sua oração. É hora das organizações cristãs reorganizarem a sua agenda e colocarem os problemas centrais do mundo como suas principais bandeiras. É hora da igreja dialogar um pouco mais com tantos e tantas que estão resistindo e criando alternativas de libertação em diferentes espaços sociais, campos e organizações na sociedade brasileira e ao redor do mundo. É hora de maior diálogo entre saberes acadêmicos, saberes populares e espirituais e experiências de produção de conhecimento e ação como anúncio e demonstração que o Reino de Deus chegou entre nós.

Luís Henrique Leão é batista, doutor em ciências na área de Saúde Pública e professor da Univesidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

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