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Quando novos sujeitos já estão em cena
Teologia e poesia são cães selvagens espreitando a beira do abismo à procura de um pouco mais de margem. São expedições sobre a borda e o quão longe podemos estendê-la. Buscam o que está além da linguagem e o que a linguagem ainda não suporta. E o que está além da linguagem por vezes é o que já esteve aquém e do que não sabemos muito sobre a origem. A teologia e a poesia percebem uma presença e tentam fazê-la aparente. São garotos na noite atacando uma mangueira com paus e pedras pra ver se conseguem derrubar uma manga. Mesmo que caia da árvore um peixe vivo. Quando a palavra toca a coisa, um mero raspão, a coisa dá sinais de existir. A palavra cria a coisa que fora da linguagem não existia para nós, mas existia.
A beira do abismo é uma relação com o vazio. E como diz a poeta polaca Wislawa Szymborska, o abismo nos cerca. O verso da poeta faz ainda mais sentido hoje quando o vazio se tornou a linguagem de uma multidão conectada. Um excesso de comunicação que não comunica. Uma avalanche de signos rolando como cabaças ocas. Uma enxurrada de informações. A vida acelerada que levamos na cidade, regida pela urgência e pela supressão do espaço-tempo, é expressa pelo poeta pernambucano Fabiano Calixto no poema “Da Cidade”, numa estrofe que diz:
o distúrbio dos espaços
em nosso campo de visão minimizado.
um exagerado estrangulamento de tempo.
essa é a língua. pior: essa é a linguagem.
Diante disso, o poeta mexicano Octavio Paz colocou um desafio para a poesia, que seria um desafio também para a teologia. Ele disse que “a aceleração do suceder histórico, sobretudo a partir da primeira guerra mundial, e a universalidade da técnica, que faz da terra um espaço homogêneo, revelam-se por fim como uma espécie de frenética imobilidade num lugar que é todos os lugares. Poesia: procura de um agora e de um aqui” (PAZ, 1982, p. 324).
O silêncio, a pausa, a solidão e o vazio se tornaram insuportáveis e não parecem ter um sentido positivo. Porém, já dizia o poeta beat Allen Ginsberg que “o pensamento é dado na solidão em toda a excelência do seu excesso”. É no refluxo da maré que podemos ver o que fica na areia. Precisamos desses momentos para redefinirmos nossas prioridades e saber o que realmente é urgente, o que vale a pena, o que permanece. Precisamos desses momentos para definirmos os focos de nossas ações e o que realmente buscamos; para termos autonomia em nosso uso do tempo e não seguirmos cegamente as urgências das constantes ameaças políticas e das inseguranças que o capitalismo nos legou.
Na experiência poética, o vazio sempre acomete o poeta com uma mudez. Nenhum verso vem, nenhum fantasma aparece. A velha linguagem não funciona mais. Waly Salomão escreveu um poema-ensaio intitulado “Vaziez e Inaudito”, uma memória de diálogo com Hélio Oiticica, em que ele diz que “a vaziez era das qualidades mais desejáveis para um artista”. Cito um trecho:
“fulano, sicrano, beltrano se repetiam exatamente porque não passavam por um período rigoroso de abandono do já feito, da linguagem alcançada, e não suportavam aquele embate, aquela agonia interior que sobrevém até que você atravesse e saia do outro lado da trajetória e para que você chegasse a pontos inusitados seria necessário abandonar provisoriamente ou suspender a categoria “artística” como uma tarjeta perpétua, como uma linha de montagem de uma produção fordiana, então como o artista não tem isto desta linha de montagem industrial ou fordiana, portanto pode e deve perfeitamente suspender, fazer uma suspensão voluntária da continuidade produtiva, exatamente para que possa vir o surpreendente, o inesperado, o impensável, o imprevisível”.
O poeta encara e tensiona o vazio até que brote uma nova linguagem que traz consigo as palavras de outro mundo. Grandes poetas que conhecemos chegaram a passar anos sem escrever. Décio Pignatari relata no pequeno livro “O Que é Comunicação Poética” que Rilke ficou 13 anos sem fazer um único poema; Paul Valéry, 25 anos. Além de vários poetas que passaram boa parte de sua vida para escrever uma obra. Dante levou 20 anos para escrever a Divina Comédia; James Joyce, 17 anos para o Finnegans Wake; Ezra Pound, 40 anos para Os Cantos; Goethe, 55 para o Fausto; Mallarmé, 30 para o Lance de Dados.
Será que somos capazes disso? De abandonar o já feito e suspender as demandas urgentes que vão se amontoando e nos engolindo no nosso ativismo? Sabemos que na política há demandas que envolvem diretamente a condição de vida das pessoas e não podemos parar por muito tempo. Mas, vale a pena o quanto somos levados pelas correntes de ameaças e derrotas uma atrás da outra? Será que escolhemos bem as nossas lutas? O vazio, porém, nem sempre é uma escolha. Às vezes o vazio se impõe. Como agora no Brasil, quando não temos um programa instituinte capaz de criar uma forte rede de colaboração entre os coletivos de esquerda. E muitos desses coletivos, respondendo as ameaças do futuro, preferem se dedicar em projetos que já começam decadentes.
Na falta da construção de um projeto capaz de mobilizar a sociedade, resta a esquerda estar sempre no papel negativo, sempre dizendo Não a tudo que não é ela, inclusive quando o que não é ela esteja também à esquerda. Isso cabe para os diversos segmentos da esquerda que se digladiam em torno do vazio de alternativa. Precisamos de uma construção em que possamos nos constituir mais pelo Sim a nós mesmos do que pelo Não ao outro.
Em um outro poema intitulado “Estética da Recepção”, Waly Salomão propõe “Suportar a vaziez / Suportar a vaziez como um faquir que come sua própria fome.” “Comer a própria fome”. De outro modo, eu proponho aqui esvaziar o vazio. Não se render ao desespero. Se o cenário institucional parece um deserto, devemos ter atenção para os espectros de um novo tempo que circundam a sociedade; as virtualidades de um outro mundo que podemos ajudar a tornar atual.
O Comitê Invisível, em seu livro “Aos Nossos Amigos”, coloca algo que converge com essa proposta:
“Não existe vazio, tudo é habitado, nós somos, cada um de nós, o local de passagem e de tecedura de uma quantidade de afetos, de linhagens, de histórias, de significações, de fluxos materiais que nos excedem. O mundo não nos rodeia, ele atravessa-nos. O que nós habitamos habita-nos. O que nos cerca constitui-nos. Nós não nos pertencemos. Nós estamos agora e sempre disseminados por tudo aquilo a que nos ligamos. A questão não é dar forma ao vazio de onde por fim se retornaria a agarrar tudo aquilo que nos escapa, mas de aprender a melhor habitar este que aqui está, o que implica chegar a entendê-lo – e isto nada tem de evidente para os filhos míopes da democracia. Entrever um mundo povoado não de coisas mas de forças, não de sujeitos mas de potências, não de corpos mas de ligações”.
Podemos começar suspendendo categorias de identidade que determinam o nosso campo de atenção. Se pensarmos além da esquerda poderemos perceber vários outros sujeitos que estão em cena. Comecemos por questionar o quanto nós ficcionamos o vazio, o quanto criamos nosso próprio vazio. O vazio pode ser a ausência do que a gente queria que estivesse presente. Devemos fazer o esforço de perceber naquilo que é outro e que não compartilha da nossa identidade, mas que está presente, um efetivo potencial político. Um exemplo evidente aqui no Rio, e não só aqui, são os coletivos evangélicos e as mobilizações que eles têm produzido. Como é o caso do Ronilso e do Fellipe e os coletivos que eles participam. Será que a esquerda quer enxergá-los como potenciais agentes ativos na cena política? Estou falando dos devires minoritários no campo evangélico e não das grandes instituições corrompidas e corruptoras do cristianismo oficial.
Penso que a teologia e os coletivos evangélicos têm contribuições importantes para a nossa experiência política. A fé, assim como a poesia, está em busca de um aqui e agora irredutível e inegociável. Para a fé inspirada em Jesus, o que é primeiro, o que realmente vale a pena, o que permanece é o amor. Mas, o amor não é chegada, mas caminho. E através dele podemos ter uma experiência de militância mais viva e sensível.
E o que é o amor? Penso ser uma inexplicável consciência que vai além da identidade conceitual do que é o amor; uma intensidade que o conceito não consegue apreender. O amor não responde o que é o amor. Sequer pergunta. O amor acontece. O filósofo e teólogo dinamarquês Soren Kierkeegard diz no livro “As Obras do Amor” que do amor só podemos conhecer seus frutos; ele diz que amar é aproximar o outro do amor; e que o amor é uma ligação com a eternidade. Sempre pensei na eternidade não como um futuro sem fim, mas, como uma abolição do tempo cronológico. Eterno é o kairós, o instante presente, aberto à multiplicidade, no qual não somos espectadores de nós mesmos, mas agentes de nosso rumo. É o tempo que pulsa no nosso corpo, o tempo que nós mesmo somos, um tempo medido pela intensidade. Experimentá-lo implica a transformação do que somos e do nosso modo de viver.
Se aquilo que invocamos como reino de Deus, aquela realidade outra em que os humanos serão reconciliados entre si e com a natureza, onde e quando não haverá mais opressão e injustiças, se isto é eterno, isto já pulsa no tempo agora e somos convidados a viver esta realidade outra. Do mesmo modo, a socialização e a anarquia não devem se reduzir a uma escatologia futura, quando o grande apocalipse da revolução acontecer. Estas ideias devem transformar nossa forma de viver agora. Penso que um problema na esquerda hoje é que ser de esquerda se tornou um credo, uma confissão ideológica. Talvez poderíamos até falar de “esquerda não praticante”. Boa parte das pessoas que compõem este segmento vivem de modo muito semelhante a qualquer outra que está satisfeita com o capitalismo. A fé, porém, é diferente da crença. Não é uma confissão do que se acredita, mas uma postura diante do tempo. Na fé, por acreditar em uma mensagem, ou melhor, por confiar em alguém, eu passo a viver de outra forma.
Quando Jesus iniciou sua peregrinação falando do reino de Deus para as pessoas e convidando elas para compartilharem com ele desta transformação, seu discurso fazia sentido porque remetia a algo que já acontecia. As pessoas já ouviam falar dele e do que ele andava fazendo. Seu discurso não era vazio, mas cheio de sentido porque cheio de vida. A palavra e a vida se confundiam no corpo de Jesus. As pessoas confiavam nele. Sua forma de viver dava esperança para as pessoas. Hoje quando a esquerda convoca a sociedade a marchar, porque não consegue mobilizar muita gente? A que o discurso da esquerda remete? Ela se faz presente na vida das pessoas de que forma? Por que as pessoas se interessariam em aceitar seu convite?
Com a experiência evangélica podemos aprender também sobre novas formas de organização. As primeiras comunidades cristãs, narradas no livro de Atos na bíblia, eram ajuntamentos de pessoas que cuidavam umas das outras, caminhavam juntas e compartilhavam seus bens umas com as outras, de modo que aquele que tinha muito não tinha sobrando e aquele que tinha pouco não passava necessidade. De fato, na maioria dos casos, as igrejas hoje não vivem mais isso. Mas, ainda há muitas experiências silenciosas por aí. Posso citar o exemplo de uma igreja em Gandu, cidade do interior da Bahia, em que a igreja se organizou para construir as casas dos membros que ainda não tinham casa. Também é comum em muitas igrejas os membros se organizarem para ajudar alguém que está passando por alguma necessidade. Em igrejas menores, mais orgânicas, menos burocratizadas, onde as reuniões acontecem de forma menos rígida, as pessoas apresentam suas lutas diárias e pedem oração pelas suas causas. A oração é um exercício que traz para nossa memória a causa do outro e cultiva em nosso coração o querer-bem do outro, o desejo de que a causa do outro seja resolvida.
Nas diversas igrejas espalhadas pelo interior do Brasil, muita gente aprendeu ler para poder ler a bíblia; no espaço das igrejas mulheres podem falar de suas vidas, assumir posições de liderança; hoje no Brasil já existem igrejas e coletivos evangélicos LGBT como o movimento Episcopaz, da Igreja Anglicana e as Igrejas da Comunidade Metropolitana; no meio evangélico há também a produção intelectual sobre gênero, raça, classe, etc. Posso citar como exemplo a teologia queer da argentina Marcella Althaus-Reid ou no Brasil o André Muskopff; há teólogas feministas no Brasil como Ivone Gebara, Nancy Cardoso, Odja Barros; e teologia sobre raça… Bom, o Ronilso está aqui. Teologias anticapitalistas são ainda mais comuns, como a teologia da libertação, além de outras.
Esses espaços e processos que citei são cheios de contradições e ambivalências, como tudo que está vivo. As potências políticas podem depender da forma como percebemos esses espaços. Nas tantas igrejas espalhadas por comunidades, favelas, fazendas, as pessoas compartilham suas dores e alegrias, criam relações comunitárias, se animam e se fortalecem juntas. A igreja é um espaço que consegue reunir pessoas e criar comunidades. A igreja pode ser um espaço de articulação territorial da comunidade, presente no interior da comunidade, se ocupada e subvertida, como propõe o livro do Ronilso, “Ocupar, Resistir, Subverter”. A forma-igreja pode nos inspirar novas formas de construção política.
Claro que as igrejas são muito variadas, dispersas, fragmentadas. Há centenas de denominações. Muitas, principalmente as maiores e mais ricas, não passam de espetáculos religiosos. Mas, muitas anônimas, invisíveis, são comunidades vivas. Nessas pequenas comunidades periféricas pode haver mais possibilidades de trocas. Nelas lidaremos com pessoas muito simples, que não fizeram as mesmas leituras que nós ou sequer sabem ler. Pessoas que reproduzem as formas sociais que o capitalismo produziu e que também sofrem por elas. Mas, são pessoas que também criam relações de solidariedade, força e resistência para sobreviver.
Diante dos problemas que envolvem pessoas, sempre temos a possibilidade de escolher entre nosso ideal, nosso dever-ser, e condenarmos as pessoas por não estarem de acordo com nosso padrão, por não serem o que queremos que fossem; e de outro lado, escolher acolher as pessoas, o que elas são, e compartilhar com elas nossos desejos. Precisamos ser mais materialistas e perceber a relação que se dá antes e além da linguagem. O filósofo lituano Emmanuel Lévinas, com seu pensamento sobre ética da alteridade, dizia que mais importante que o ‘dito’ é o ‘dizer’; a forma como eu me coloco em relação ao outro é mais importante do que eu digo em si. Precisamos estabelecer mais relações, fortalecer os laços sociais, construir e reconstruir nossos espaços coletivos. E pra isso precisamos de mais do que verdades para defender. Verdades servem para construir Estados, partidos, exércitos, máquinas. Essas coisas precisam de exatidão e objetividade para funcionar. Mas, um rosto não sobrevive de verdades. Um rosto sobrevive de encontros. E comunidades, de rostos que se encontram.
* Discurso no colóquio “Teologias da Multidão”, na Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 20/10/2016
Referências Bibliográficas
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CALIXTO, Fabiano. Música Possível. Rio de Janeiro: 7letras, 2006.
Comitê Invisível. Aos Nossos Amigos – Crise e insurreição. São Paulo: N-1 Edições, 2016.
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LÉVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito: diálogos com Philippe Nemo. Lisboa: Edições 70, 2014
NEGRI, Antonio. Kairòs, Alma Venus, Multitudo: nove lições ensinadas a mim mesmo. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.
PACHECO, Ronilso. Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e teologia em tempos de violência, racismo e opressão. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2016.
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PIGNATARI, Décio. O Que é Comunicação Poética. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
SALOMÃO, Waly. Poesia Total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.