Erotizando a Reforma Protestante
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A Reforma Protestante veio no kairós divino. “Transformações eram necessárias na Igreja e na sociedade. A publicação das 95 teses de Lutero chegou num momento oportuno.” (ULRICH, 2016, p. 72). Não retomarei a história e os desdobramentos da Reforma Protestante, afinal, esse ano completa 500 anos desde que tudo aconteceu e há uma produção extensa nesse sentido. Entretanto, vale dizer que o protestantismo não reformou as noções do corpo e sexualidade. 500 anos depois e as noções do corpo continuam as mesmas. As poucas vozes que vieram, de fato, reformar e fazer uma teologia do corpo e da sexualidade são excluídas, marginais, e consideradas heréticas pelos “grandes teólogos reformados”.
A movimentação do corpo é ainda controlada pelas dogmas, doutrinas que o condenam. Fazem uma teologia sem corpo. O Deus que se fez corpo não é levado em conta. A teologia protestante se tornou uma experiência morta do corpo quando apenas se preocupou com a metafísica, quase sempre desconexa com a vida. É necessário trazer para a tradição protestante a erótica. Como diria Jaci Maraschin: “o erotismo é a dimensão espiritual do corpo vivo. É o impulso que leva o corpo para o outro corpo”. Somos o Corpo, partilhamos o Corpo. Buscar a dimensão erótica do protestantismo é trazer vida para os ossos ressecados.
Seguindo a tradição protestante: Sola Scriptura, Sola Fide, Sola Gratia, Solus Christus, Soli Deo Gloria.
SOLA SCRIPTURA
Somente a Escritura! Mas uma Escritura erótica, por favor. Buscar o corpo na palavra. Encontrar a vida no papel. O erotismo nos versículos. Carne, ossos, corpos desejantes e desejáveis, corpos que sofrem, que oram, que gozam, é disso que a Bíblia fala! O testemunho desses corpos perante o Mistério da Vida, testemunho de experimentar o Sagrado e beber das águas profundas do Divino. Ler a Bíblia é uma experiência do corpo! Lemos. Nossa pele se arrepia. Lágrimas começam a brotar de nossos olhos. Uma alegria invade nosso ser.
Mas assim disse o autor de Hebreus no capítulo 4:12: “Pois, então, a palavra-poesia é pulsante, respira, pira, é viva. invade, penetra, entra na alma, no espírito, nos ossos, na carne, no corpo, no pensar. faz a gente conhecer a gente e ser mais gente. faz o coração ser mais coração e devolve a vida para a vida.”
Ler o que o texto diz e não diz! Suspeitar, questionar, suspirar! Comer as palavras, sentir o sabor da vida e o dessabor da morte que permeia a Bíblia. Compreender que nela há contradições, inspirações, belezas e trevas. É necessário de uma leitura do Espírito, leitura que promove vida. A leitura bíblica do Espírito é marcada pela caridade e sensibilidade, não mais pela literalidade do texto. É a era marcada pela contemplação e não mais pela “autoridade da letra”.
A leitura que fazemos da Bíblia deve promover vida. Valorizar os corpos. Libertá-los do legalismo da religião que provém da Bíblia. A Bíblia é nossa opressão e libertação, tudo depende da maneira que a lemos. Por isso é necessária a tarefa de buscar o erotismo das Sagradas Escrituras! Buscar esses corpos que gemem de sofrimento e de prazer.
Sim! Somente a Escritura! Mas somente a Escritura que liberta!
SOLA FIDE
Somente a fé. Essa energia que faz nosso corpo pulsar por esperança. É a fé que nos inspira a nos movermos. Invisível, porém, poderosa. A certeza de coisas que não vemos. É o que faz não cairmos no desespero. Como diria Rubem Alves “é uma relação de confiança com Deus: é flutuar num mar de amor, como se flutua na água.”
Somos salvos somente pela fé. Salvos do desespero e inércia de vermos tanta desigualdade social; de vermos tantas mulheres sendo mortas, estupradas, escravizadas em todos os cantos do mundo; crianças sem apoio emocional, social, exploradas, traficadas; famílias sem moradia, despejados de ocupações, seus abrigos incendiados pelo governo; LGBT’s sendo espancados até a morte, perseguidos pela igreja e sociedade; Racismo e o extermínio da juventude negra; guerras e mais guerras; a falta de acolhimento com os refugiados, xenofobia; todo extrativismo da terra, abuso dos recursos naturais, agrotóxicos em tudo o que comemos… Sim, somente a fé pode nos salvar.
Ter fé em que uma situação dessa pode mudar é confiar na presença do Divino agindo em nós e por nós. Não, não é a fé em doutrinas, dogmas, credos que nos salvará do inferno que somos. É a fé que pela compaixão podemos ser mais humanos, olhar nos olhos do outro e ver Deus, encontrar nós mesmos naquele que está caído. A fé mais pura é aquela que entrelaça os corpos como em uma noite de amor, corpo que se funde em outro corpo, que faz dois se tornarem um: Um com Deus. Um com o próximo.
Sim! Somente a fé! Aquela que nos faz mover montanhas para ver a vida sendo valorizada!
SOLA GRATIA
Somente a graça! É preciso se embriagar com o vinho da graça divina, se banhar nesse rio onde a dignidade humana e o amor de Deus se abraçam. Elsa Tamez diz que “dignidade e graça divina são inseparáveis, porque é impossível experimentar a graça de Deus à margem do sentimento da dignidade humana. Se não há vivência da dignidade humana, há ausência de gratuidade e da graça de Deus; se há dignidade humana, de alguma maneira há presença de Deus e de sua glória”
A experiência da graça divina:
Lamber o céu em um entardecer. Respirar o voo dos pássaros. Deitar debaixo da amoreira. Permitir que a chuva inunde os pulmões de doçura. O filho que volta para a casa vivo. Ter comida na mesa para a família. Poder abraçar o amor. Ver as crianças se divertindo. Olhar nos olhos da pessoa amada. Pedir perdão. Perdoar. Trançar os cabelos da filha. Contar histórias para o sobrinho. Dançar até as pernas tremerem. Acalentar um choro desesperado. Beber as lágrimas e a transformar em riso. Mergulhar no céu da boca de alguém. Comer fruta do pé. Poder agraciar alguém querido com um presente. Cantar em uma noite escura. Escutar os sussurros de Deus no caos. Ter amigos. Costurar esperanças na juventude. Explosões de orgasmo. Beijar o pôr-do-sol. Beber água. Abrir a geladeira e ter comida. Cavalgar nas nuvens do amanhecer. Incentivar os sonhos de alguém. Sonhar acordado. Respirar a cor de um girassol. Ser consolada pelas letras vivas que correm nos livros sagrados. Contemplar a graça de Deus no cotidiano.
A graça de Deus dignifica a humanidade.
A graça de Deus é encontrada na experiência do cotidiano.
A graça de Deus é quando lutamos para que todos tenham uma vida digna quando combatemos tudo aquilo que tira a vida e as possibilidades de ser no mundo.
A graça de Deus é plural, sensual, colorida, é movimento, fluidez, cores que se misturam.
A graça de Deus dignifica os corpos, as sexualidades e identidades.
A graça de Deus é encontrada na experiência do cotidiano.
A graça de Deus é quando lutamos para que todos tenham uma vida digna quando combatemos tudo aquilo que tira a vida e as possibilidades de ser no mundo.
A graça de Deus é plural, sensual, colorida, é movimento, fluidez, cores que se misturam.
A graça de Deus dignifica os corpos, as sexualidades e identidades.
Sim! Somente a graça de Deus! Aquela que dignifica todos os seres e os transforma em extensão de seu amor.
SOLUS CHRISTUS
Somente o Cristo. O nazareno feito Cristo, Jesus. O Deus encarnado. Jesus, o comilão e beberrão, aquele que andava com os estranhos, pecadores, tortos perante a sociedade, o que transgredia a lei religiosa e que lidava com ironia perante o Estado, políticos e líderes religiosos. Jesus, um Deus, mas um Deus marginal (ALTHAUS-REID, 2016, p. 85). Indomável, imprevisível, livre, a extraordinária liberdade de Jesus! Liberdade do silêncio, retiro, oração. Liberdade que nos oferece liberdade.
Símbolo de Deus. Na tradição cristã é a porta que nos permite experimentar o Mistério da Vida, assim como Krishna é para a tradição vaishnava e como Buda para os budistas. Jesus é o nosso libertador, pois renuncia o sistema de dominação e procura corporificar em sua pessoa a nova humanidade de serviço a capacitação mútua (RUETHER, 1993, p. 117). Somente o Cristo! O Cristo que “renova a visão profética pela qual a palavra de Deus não valida a hierarquia social e religiosa existente, mas fala em defesa dos grupos marginalizados e desprezados da sociedade” (RUETHER, 1993, p. 116), que
“revisa a linguagem religiosa ao usar o termo Abba para designar Deus. Ele fala do Messias como servo, e não como rei, para visualizar novas relações entre o divino e o humano. A relação com Deus não se tona mais um modelo para relações de dominação-subordinação entre grupos sociais, os líderes e os liderados. Pelo contrário, a relação com Deus significa que não devemos mais chamar nenhum homem de “pai, professor ou mestre” (Mateus 23,1-12). Ela nos liberta de relações hierárquicas e faz de todos/as nós irmãos-irmãs umas das outras.” (RUETHER, 1993, p. 116)
É por esse Cristo que somos salvos de nós mesmos! Esse Cristo ambíguo, desajeitado, queer, e ainda como diria Marcella Althaus-Reid, um Cristo bissexual, “O Bi-Cristo é um Deus que está no meio, pode entender as diferenças e amá-las. Um Deus que não pode ser encaixado em uma identidade fixa porque nunca se define completamente. É um Messias amplo.”
Sim! Somente Cristo! Aquele que liberta os cativos, dá vista aos cegos, força aos cansados, esperança aos desesperançosos, terra aos sem terra, dignidade a comunidade LGBT, restaura os corações e prega o ano aceitável de Deus.
SOLI DEO GLORIA
Somente Glória a Deus. Deus é a palavra sem sentido que nos dá sentido. Não pode ser definido, fixado, encaixotado nas diversas teologias. Deus é um Deus vivo, dinâmico, em movimento. Um casal em um beijo apaixonado, uma fogueira queimando a lenha, mãos dadas, gargalhadas com os amigos, silêncio contemplativo, cheiro de grama recém cortada, um abraço de saudade, um grito de prazer, as ondas do mar, subir no topo de uma montanha. Deus, um presente-ausente. Experienciamos Deus quando não pensamos nele, afinal, dizia o poeta Alberto Caeiro, que pensar em Deus é desobedecer a Deus.
Damos glórias a Deus quando o esquecemos no íntimo do nosso ser. Quando nos tornamos um, assim como em uma relação amor, quando os sexos se encontram e nos diluímos no êxtase . A harmonia em forma de unidade. Respirar o sopro das narinas de Deus. Deus me tirou para dançar, me ensinou os passos e participo dessa ciranda com ele.
Damos glórias a Deus quando ouvimos seu silêncio e encontramos paz. Deus fala, mas sua voz é silenciosa. No espaço vazio entre a sobrancelha o encontro aquele que não pode ser acabado, um Deus que é tão grande que é inacabado. Não é possível acabá-lo em uma religião, em uma teologia, em ideias, doutrinas, dogmas.
Deus é como um polvo no labiríntico oceano. Com movimento, solto, livre, cor de mistério, muito além do nosso entendimento, seus tentáculos são suas ações de amor – chegam onde ninguém mais conseguiria. Deus nada sobre as águas profundas de nós mesmos e dança ao som do seres aquáticos. Polvo gigante de ternura e doçura, faça morada em nós.
Sim! Somente Glória a Deus! Aquele que é livre, inacabado, solto. Que dança nos corações e está presente das diversas religiões. Não o Deus cristão, mas o Mistério terrível e fascinante da vida! Sim, somente glórias a Ele, infindável, inominável e eternamente Belo.
Bibliografia
ALVES, Rubem. Coisas da alma. São Paulo: Paulus. p. 40
ALTHAUS-REID, Marcella. “Marx em um bar gay: a teologia indecente como uma reflexão sobre a Teologia da Libertação e sexualidade. ”. In RIBEIRO, Cláudio (org). Rasgando o Verbo – Teologia Feminista em foco. São Paulo : Fonte Editorial, 2016.
BRUM, Eliane. Revista Época, Edição 329, 06-09-2004. Disponível: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0, EMI63840-15230,00- ARQUIVO+ELIANE+BRUM.html. Acesso <26 de mai. 2017>.
MARASCHIN, Jaci. É no corpo que somos espírito. In: Revista Estudos de Religião. São Bernardo do Campo: Metodista, ano 17, n. 24, p. 97-116, jun. 2003.
RUETHER, R. R. Sexismo e religião: rumo a uma Teologia Feminista, São Leopoldo: Sinodal, 1993
TAMEZ, Elsa. Sobre las experiencias de los seres humanos: gracia de Dios y dignidade humana. In BATISTA, Israel (Ed). Gracia, crus y esperanza en Améria Latina. Quito: CLAI, 2004. p. 242-243
ULRICH, Claudete Beise. A atuação e a participação das mulheres na reforma protestante do Século XVI. Estudos de Religião, v. 30, n. 2 • 71-94 • maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-801X – Eletrônico: 2176-1078.