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Cinco “nada ortodoxas” mães de Jesus

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Cinco “nada ortodoxas” mães de Jesus

Cinco “nada ortodoxas” mães de Jesus

É incomum em uma cultura patriarcal, uma genealogia matrilinear. Mas, no Evangelho de Mateus encontramos cinco mães nas raízes genealógicas de Jesus: Tamar, Raabe, Rute, Betseba e Maria de Nazaré. Mulheres “nada ortodoxas”. “Nada ortodoxos” foram também os caminhos pelos quais se tornaram mães genealógicas de Jesus. Entre elas, estrangeiras, transgressoras e até mulheres consideradas de reputação duvidosa. Essas foram as escolhidas mães de Jesus. Seus nomes, suas histórias contrariavam totalmente o modelo religioso-patriarcal vigente.

Reler essas histórias, pode ajudar a rever as imagens e modelos idealizados do ser mãe que pesa sobre as mulheres nas culturas cristãs patriarcais. Vamos celebrar e fazer memória dessas “nada ortodoxas” mães de Jesus durante esta semana.

Tamar

Você pode encontrar sua história no capítulo 38 do Gênesis no contexto das narrativas da formação do povo hebreu e seus patriarcas. Porém, Tamar não pertencia, originalmente, ao povo hebreu. Era uma mulher canaanita. Entrou na história dos hebreus, por uma decisão “nada ortodoxa” do patriarca Judá, que escolheu a estrangeira, da tribo de Canaã Tamar para ser esposa de seu filho mais velho Er. Aconteceu que Er morreu antes de deixar descendência. De acordo com a lei do Levirato, o cunhado, tinha a obrigação legal de garantir descendência ao irmão mais velho. Onã, o cunhado, sabendo que a descendência não seria sua, mas do irmão falecido, cada vez que se unia a Tamar praticava coito interrompido, negando um direito legal a Tamar de gerar descendência na familia de Judá. Onã morreu sem permitir que Tamar fosse fecundada, deixando- a numa situação de extrema vulnerabilidade, uma vez que na cultura hebraica patriarcal, uma mulher viúva e sem filhos não tinha qualquer garantia familiar, social ou econômica.

Sendo considerada uma mulher “amaldiçoada”, o sogro Judá, ordenou que Tamar voltasse a viver na casa de seu pai como viúva até que seu terceiro filho, pudesse assumir a obrigação legal para com ela. Promessa nunca cumprida.

Depois de aguardar resilientemente por anos, Tamar, ficou sabendo que a esposa do seu sogro havia falecido, o que tornava Judá, seu sogro, apto a ser o seu “Goel”, redentor de acordo com a lei do Levirato.

Tamar, corajosamente traçou o plano que forçava o reconhecimento do seu direito legal. Tirou o traje de viúva, cobriu-se com um véu e sentou-se na entrada da cidade onde ficavam as prostitutas e por onde passaria seu sogro. Ao passar, Judá, aproximou-se dela sem reconhecer que era sua nora, mostrou interesse de ter seus serviços sexuais. Tamar exigiu que, antes deixasse como garantia da retribuição, o anel de selo, o cordão e o cajado, afim de garantir a identidade de quem lhe pagaria por seus serviços.
Três meses depois, a viúva Tamar apareceu gravida, e foi acusada de prostituição e Judá ordenou, conforme a lei, que fosse queimada viva. A viúva só poderia ser redimida por alguém da casa de Judá , fora isso, seria considerado crime de adultério .

Ao ser acusada, Tamar, prontamente disse: “Estou grávida do homem a quem pertence isto. Reconhece este anel de selo, este cordão e este cajado?” Judá ao reconhecer disse: “Ela é mais honesta do que eu!”. Tamar deu à luz dois filhos gêmeos de Judá, entrando na genealogia de Jesus: “Judá gerou Perez e Zerá, cuja mãe foi Tamar!” Mateus 1:3.

Diante da injusta e sistemática negação de direito por parte dos homens da casa patriarcal de Judá, Tamar, foi forçada a construir seu próprio caminho de VITÓRIA, fazendo justiça ao significado de seu nome. Venceu as tramas patriarcais, tornando-se a primeira das nada ortodoxas mães de Jesus!

Raabe

Da “nada ortodoxa” genealogia das mães de Jesus, brota mais uma mulher surpreendente: Raabe! uma mulher palestina, de Canaã, terra que mana leite mel, “prometida” aos hebreus, mas, que, no entanto, já era habitada por um povo com sua própria história e sua própria fé. Raabe é, portanto, pertencente a essa terra e esse povo que sofreu a invasão e conquista por parte do povo de Israel. A história de Raabe se encontra com a história do povo israelita no segundo capítulo do livro de Josué, quando são iniciadas as investidas de conquista da cidade de Jericó liderada por Josué. Raabe pertencia a uma familia pobre que morava no campo e trabalha com a produção de canas de linho. Mas, Raabe vivia na cidade e tinha uma casa próxima aos muros da cidade de Jericó. Sua casa era uma hospedaria simples onde ela trabalhava como prostituta e, devido a isso, recebia muitas visitas. Diz o texto bíblico que os dois hebreus espias enviados para reconhecimento da terra, passaram a noite na casa de Raabe. Talvez, foram até lá, não apenas pelos serviços sexuais, mas também porque era um lugar estratégico para seus intentos de conquista. Raabe por sua profissão, tinha todas as informações necessárias, uma vez que, por sua casa passavam homens de Jericó que contavam sobre assuntos sobre a política da cidade.

Quando o rei de Jericó tomou conhecimento que os israelitas estavam passando a noite na cidade para espionar a terra, enviou mensagem a Raabe: “Mande embora os homens que entraram em sua casa, pois vieram espionar a terra”. Raabe escondeu os dois homens na eira da sua casa sob os talos de linho, e informou aos guardas que recebeu os homens e não sabiam de onde vinham, mas que já tinham ido embora. Depois de dispensar os guardas, Raabe fez com que os espias prometessem, que ao tomar a terra, tratariam sua casa e sua família com a mesma misericórdia com a qual ela os tratou, livrando-os da morte. Os espias aceitaram o acordo e pediram que ela amarrasse um cordão vermelho na janela da casa. “Assim elas os despediram, e eles partiram. Depois, ela amarrou o cordão vermelho na janela” Josué 2:21. Jericó foi conquistada e toda sua casa foi preservada da destruição. Posteriormente, Raabe se casou com um israelita chamado Salmom e assim, Raabe passou a fazer parte da história do povo israelita: “Salmom gerou Boaz, cuja mãe foi Raabe”. (Mateus 1:5).

Raabe teria sido uma traidora do seu povo? A leitura feminista decolonial da Bíblia, tem oferecido novos e importantes olhares sobre essa história que envolve colonialismo e traição, uma vez, que ela oculta dois espias israelitas em sua casa e abraça a fé israelita e a missão colonial, salvando assim sua vida e de sua familia, quando os muros de Jericó estavam sendo derrubados. Mesmo considerando relevantes a pergunta, me atenho aqui, a tarefa de ressaltar o aspecto “nada ortodoxo” dessa mulher que compõe a genealogia de Jesus. Raabe, uma prostituta canaanita, foi peça chave na história de Israel, povo monoteísta-patriarcal. Tendo em vista como são tratadas e julgadas as mulheres, profissionais do sexo pela moralidade religiosa nos dias de hoje, imaginem o que significou para a cultura judaica reconhecer e registar o nome da prostituta canaanita Raabe como heroína da fé do seu povo? Acho ainda mais fantástico, que o nome de Raabe esteja na relação dos heróis/heroínas da fé no livro de Hebreus (Hb.11:31). Esse é o aspecto mais relevante dessa nada ortodoxa mãe de Jesus, cujo nome significa “ampla”, “plena”, nome que indica, talvez, que ela, seja maior e mais ampla do que qualquer olhar ou julgamento que se tente colocar sobre ela. Como uma mulher prostituta, que viveu à margem de uma cultura religiosa patriarcal, e conheceu as consequências de uma guerra e o sofrimento, sobretudo para as mulheres e crianças, talvez, tenha levado ela a agir partir de concepções de fé e política mais amplas, que foram além das disputas ideológicas e religiosas que envolvia cananeus e israelitas. Ou ainda, restou a ela, no meio da guerra entre os dois povos, uma única maneira de afirmar que seu corpo e sua vida estavam acima das disputas coloniais-patriarcais nas quais os corpos das mulheres, eram vistos por ambos os lados, apenas como instrumento útil no jogo do poder de homens e deuses.

Rute

Dentre as “nada ortodoxas” mães de Jesus, Rute é uma das mais conhecidas. Tem um livro com seu nome e sua história na Bíblia. Em quatro capítulos se desenrola uma trama novelesca. No primeiro capítulo se narra o drama da familia do israelita Elimelec. Uma verdadeira tragédia abalou a estrutura patriarcal daquela familia. Morreram todos os homens, e as únicas sobreviventes foram as mulheres: A israelita, Noemi e suas duas noras moabitas: Rute e Orfa. As mulheres viúvas na estrutura patriarcal eram impedidas de desenvolver qualquer atividade econômica e acessar qualquer herança familiar. Portanto, a vida das três mulheres viúvas estava inviabilizada. Reuniam todos os requisitos de marginalização social: Eram mulheres, pobres, viúvas e sem filhos. Não havia pior desgraça que esta. O esquema patriarcal não deixava saída para essas mulheres. Suas vidas dependiam da existência dos homens, fossem pais, maridos ou filhos homens. Portanto, a morte dos homens da casa patriarcal de Elimelec, decretava, também a morte social e econômica das mulheres. Noemi, aceitando sua desgraça, pede que suas noras retornem à “casa da mãe”. A “casa da mãe” é a chave para compreender a virada contra patriarcal da história.

A morte dos homens que deveria decretar a morte das mulheres, acabou por provocar a insurreição delas ao sistema patriarcal, e o nascimento da “casa da mãe”. Enquanto, Orfa retornou à casa da sua mãe, Rute ficou, e junto com Noemi construíram uma proposta de casa não patriarcal. Juntas, sogra e nora, israelita e moabita desafiaram os esquemas patriarcais. Primeiro, elaboraram um plano de sobrevivência. Rute, a mais jovem foi colher espigas nos campos deixadas para os pobres. Trabalho duro e perigoso! Muitas mulheres eram estupradas nestes campos. Por isso, logo entenderam que precisavam fazer mais do que sobreviver à fome. Recolher sobras era pouco. Era preciso converter esmola em direito! Precisavam lutar por direito e dignidade. Qual a saída? No campo onde Rute colhia as sobras, encontraram a saída. Boaz, dono do campo, era da familia de Elimelec, e pela a lei do Levirato poderia ser o resgatador (goel) da terra e da descendência de Elimelec para Noemi. Mas, Noemi era avançada de idade. O que fazer? Ela mesma traçou o plano e orientou a jovem Rute. É preciso sabedoria das velhas mães para subverter os esquemas patriarcais!

Na eira de Boaz, uma noite de subversão. No final da colheita, Rute passou a noite na eira que era espaço proibido para mulheres. Noemi deu todas a dicas: “Tome banho, passe perfume, vista seu manto e desça a eira. Quando ele for dormir, veja o lugar onde ele estará deitado, aproxime-se e descubra os pés dele e deite-se. Assim fez a Rute. A palavra hebraica réguel (geralmente traduzida por “pé”) dentre algumas de suas traduções possíveis estão: pé, planta do pé, perna, órgãos genitais. O plano subversivo teve total êxito. Depois de superar obstáculos legais e estruturais para realizar o Levirato, Boaz casa-se com Rute e dessa maneira, “nada ortodoxa”, Rute, a migrante moabita, entrou na história do povo de Israel e torna-se uma das mães genealógicas de Jesus: “Boaz gerou Obede, cuja mãe foi Rute. (Mateus 1:5)

A novela de Rute termina com uma louvação das mulheres à velha matriarca Noemi, exaltando Rute, a moabita, como a verdadeira “goel”, redentora: “Sua nora que ama você vale mais do que sete filhos!”. Em uma cultura religiosa patriarcal onde Deus era controlado e usado contra as mulheres, a novela de Rute, anunciava que a sororidade política entre mulheres era caminho de redenção. Trazia o grito e o protesto das mulheres e dos grupos marginalizados pela teologia patriarcal-sacerdotal, que neste período, demonizava as mulheres estrangeiras, expulsando-as de suas fronteiras e do meio seu povo. Rute é protagonista de uma história “nada ortodoxa” que desafia e desmantela as casas e projetos patriarcais de ontem e de hoje!

Betseba

A mulher de Urias, é como é apresentada Betseba na genealogia das “nada ortodoxas” mães de Jesus no Evangelho de Mateus. No início fiquei intrigada o porquê negar seu nome próprio. Mas ao final, compreendi que talvez essa foi uma maneira da narrativa de honrar a história da violada esposa de Urias e a memória do seu assassinado esposo. Você pode conhecer um pouco da história de Betseba nas narrativas palacianas do reinado de Davi e Salomão. Digo pouco, porque o narrador pouco fala dela e de seus sentimentos. No contexto da história isso não era importante. Betseba é descrita pela tradição hebraica como uma mulher belíssima. Ela era filha de Eliã e esposa de um dos generais do exército de Davi, Urias. Ela morava em uma casa perto do palácio real que tinha um pátio interior, lugar bom para tomar banho em dias muito quentes. Em uma tarde ela estava fazendo seu banho de purificação depois do período menstrual, sem saber que do terraço da casa real o rei Davi, a olhava cobiçosamente. Logo que a viu procurou saber quem era aquela bela vizinha, e foi informado que ela era esposa de Urias, o que impedia que ela a possuísse. Na monarquia patriarcal, o rei podia ter quantas mulheres quisesse, mas não era permitido tomar uma mulher casada, não em respeito às mulheres, mas em respeito aos preceitos da honra masculina. Tomado pelo desejo e do poder real, Davi, enviou sua guarda real para buscar Betseba e levá-la até ele no palácio, onde a tomou sem seu consentimento, e depois a mandou de volta para casa.

“Estou grávida!” único registro da voz de Betseba nessa narrativa! Ela envia uma mensagem para o rei com esse comunicado: Estou grávida! O que isso significou para ela? Como ela estava se sentindo em relação a gravidez? Mais, uma vez, o narrador não se importa com ela. Mas, imaginemos como se sentem as mulheres que descobrem que estão grávidas depois de um abuso sexual? Quais os sentimentos e conflitos vividos por uma mulher durante uma gestação que carrega a marca do estupro sofrido? Ao receber a mensagem, o rei planeja encobrir seu crime, ordenando a volta de Urias do campo de batalha, para que ele pudesse ter relações sexuais com a esposa e assim atribuir a ele a gestação. Porém, isso não ocorreu. Urias permaneceu no palácio sem ir ter com a esposa, por fidelidade ao cumprimento de sua missão de proteger o rei. Que ironia! Assim, o rei Davi recorre a método mais violentos para proteger sua própria pele da culpa: Envia Urias de volta com a seguinte mensagem para o comando da tropa: “Coloquem Urias na linha de frente, onde a batalha é mais forte, e retirem-se da retaguarda. Então, ele será ferido e morto. Assim aconteceu. Ao saber da morte do seu marido, Betseba chorou por seu marido. Davi esperou passar o luto e mandou buscar Betseba e trazê-la para sua casa, tornando-a mais uma de suas esposas. O filho dessa gestação banhada de violência morreu, mas, Betseba, engravidou de outro filho de Davi: Salomão. Assim, é que Betseba torna-se mais uma das mães nada ortodoxa de Jesus: Obede gerou Jessé; e Jessé gerou o rei Davi. Davi com a mulher de Urias, foi o pai de Salomão. (Mateus 1:6-7).

Betseba tem sido frequentemente retratada nas leituras patriarcais-fundamentalista com uma mulher tentadora e adúltera, que propositalmente foi tomar banho com seu belo corpo desnudo na área externa da sua casa para ser vista pelo rei Davi. A partir dessa perspectiva, a culpa foi de Betseba e não do rei Davi. Culpar as mulheres vítimas de estupro, pela roupa que usava, pelo lugar que estava é uma velha estratégia de proteção dos abusadores sexuais no sistema patriarcal. Além de Betseba, muitas mulheres foram vítimas de abuso sexuais na casa do monarca Davi. Inclusive sua filha Tamar foi abusada pelo meio irmão Amon, e Davi silenciou o caso, acobertando o filho.

Além de lidar com os traumas, cicatrizes físicas e emocionais, o silenciamento das suas dores, as mulheres vítimas de estupro, sofrem com a cultura que culpabiliza sempre as mulheres e protege os abusadores.

Qual importância de que uma mulher que sofreu abuso e violência sexual ter sido escolhida para ser uma das mães “nada ortodoxas de Jesus? A meu ver, além de ser um sinal de solidariedade de Deus com os corpos violados das mulheres, é também uma denúncia a todos aqueles que usam o poder de forma abusiva e violenta. Por isso Deus não deixou o rei Davi passar impunemente. Enviou o profeta Natã à Davi para lhe contar a seguinte parábola: “Em certa cidade havia dois homens: um rico e um pobre. O rico tinha muitas ovelha e bois. O pobre não tinha nada, somente uma pequena ovelha que tinha comprado. Ele a criara, e ela havia crescido com ele e com seus filhos. Ela comia do seu pão e bebia da sua taça. Dormia em seu colo e era para ele como uma filha. Um viajante foi ao homem rico, e este se recusou a tomar uma das suas ovelhas ou algum de seus bois e prepará-los para o peregrino que tinha vindo a ele. Pegou então a ovelha do homem que o visitava”. A ira de Davi se inflamou contra esse tal homem. E disse a Natã: “Tão certo como Deus vive, o homem que fez isso é réu de morte. E pela ovelha ele restituirá quatro vezes, por ter feito tal coisa e porque não teve piedade.”. o profeta Natã disse a Davi: Esse homem é você!”

O profeta Natã e sua parábola “deixou o rei nu”. Ao mesmo tempo que desmascarou o rei, inocentou Betseba, retratando-a com a ovelha do pobre que foi tomada sem escrúpulo e servida como janta”. Onde estão esses profetas hoje? Onde estão as profecias que desnudem “o rei” e suas violências e agressões às mulheres? Concluo com a frase de Martin Luther King Junior: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.”!

Maria de Nazaré

Poderia vir alguma coisa de Nazaré? Mais uma escolha nada ortodoxa de Deus! Nascer do ventre de uma pobre mulher da cidade de Nazaré. Se essa encarnação estivesse acontecendo hoje, provavelmente, a jovem escolhida seria uma jovem preta periférica. Penso que a escolha de Maria de Nazaré se deu, não por ter sido ela, uma jovem especial ou privilegiada, mas, por ser uma Maria como tantas outras “Marias” da região periférica da Galiléia. Região estigmatizada, assim como são, estigmatizadas as populações periféricas espalhadas por nossas cidades. Uma gravidez nada ortodoxa! Achou-se grávida do Espírito Santo! Porém foi consentida! Maria, uma jovem nada ortodoxa, que aceitou ser parte de um projeto nada ortodoxo! Ela conhecia bem sua cultura e religião. Sabia dos riscos e perigos que essa gestação a submeteria. No entanto, corajosamente disse sim! Enfrentou o julgamento do homem com quem estava comprometida e o julgamento de toda cidade. O noivo José, planejou abandoná-la, mas depois, acabou por engravidar do mesmo sonho de Maria. Para fugir da acusação de adultério e apedrejamento, Maria teve que ficar refugiada nos primeiros meses de sua gestação na casa de sua prima Isabel, que também vivia uma gravidez nada ortodoxa! Ventres cheios de profetas e profecias nada ortodoxos!

Eram tempos virulentos assim como os atuais. A pandemia da violência e da morte crescia, assim como crescia o ventre de Maria. A criança já nasceu perseguida e marcada pelo sistema e pelo Estado. Assim como nascem os filhos pretos das periferias. Quando o menino cresce aumenta aflição da mãe. Nunca se sabe se ele volta seguro para casa. Maria, viveu essa angústia do primeiro ao último dia da vida do seu filho. A maternidade de Maria não foi romântica, assim como não é romântica a maternidade de mulheres pobres, periféricas que criam seus filhos e filhas sem as mínimas condições e garantias sociais e econômicas. O lema dessas mães é aquele que um dia eu vi grafitado em um muro da periferia da cidade de São Paulo: “Se nóis não é por nóis! Quem será contra nóis?” Penso, agora, em todas as maternidades vividas no tempo de pandemia e a vulnerabilidade social e econômica enfrentadas pelas mães trabalhadoras informais. As mães que trabalham nos serviços essenciais, sem quarentena, sem home-office! Não! Não podemos exaltar o dia das mães e a santíssima Maria, a mãe de Nazaré, e, ao mesmo tempo ignorar e ficar indiferente a existência e as lutas dessas mães e dessas “marias”!

A maternidade de Maria de Nazareth foi vivida entre dores e delícias. Mais dores do que delícias. “minha mãe recebeu a notícia que ela já esperava. Foi lá acendeu uma vela perto do corpo. (…) Só ela, a fumacinha, a mãe e eu ali, velamos o corpo do meu irmão”. Escopetas como facas afiadas brincam tatuagens, cravam fendas na nossa tão esburacada vida. Balas cortam e recortam o corpo da noite. Mais um corpo tombou (A gente combinamos de não morrer – Conceição Evaristo).

Perder um filho, assistir seu assassinato. Testemunhar sua condenação e sua execução como um bandido qualquer. O Estado, a Religião que deveriam proteger a vida do seu filho, foi quem ordenou a morte! Maria sabia desde o início que não geraria um filho para si mesma, para sua própria realização e redenção. Sua gravidez foi redenção da humanidade. Sabendo disso, ela transformou a dor em luta, em canção de esperança: “Minha alma exalta ao Senhor, meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque olhou a humilhação de sua serva. Eis que de agora em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada, pois o Poderoso fez grandes coisas por mim. Seu nome é santo e sua misericórdia perdura de geração em geração para aqueles e aquelas que o temem. Ele agiu com a força do seu braço. Dispersou os arrogantes de coração. Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e famintas, e despediu os ricos sem nada!”

Em Maria de Nazaré encerra a genealogia das mães nada ortodoxas de Jesus que se distingue de uma maneira importante das outras quatro mulheres. Nas outras mães, o homem é sempre objeto de ação: Abraão gerou Isaque … Judá gerou Perez de Tamar etc. As mulheres são mencionadas de acordo com o homem e sua história. Mesmo quando sua presença rompe com a estrutura patriarcal da invisibilidade das mulheres, elas ainda estão dentro de toda uma dinâmica patriarcal de organização das relações na família e na sociedade. Aqui a novidade aparece através de Maria: Ela não tem mais um homem como sujeito, mas uma mulher. Isso aponta para o colapso patriarcal “Jacó gerou José, o marido de Maria, de quem Jesus foi gerado” (1,16). Assim, o que nela gerado foi a partir da Ruah , do próprio espírito da vida! Por isso, o que Maria dá à luz não está a serviço de nenhuma estrutura patriarcal, não serve como instrumento de poder para legitimar mecanismos de marginalização, nem para apoiar hierarquias dominantes de pais, reis e senhores.

Pastora batista, professora de Novo Testamento e assessora do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). É formada em Educação Religiosa pelo Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil e em Pedagogia pela UFAL. Tem especialização em assessoria bíblica e doutorado em Teologia pela Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo.

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