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Jesus e a disputa pelo sentido da Escritura

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Jesus e a disputa pelo sentido da Escritura

Jesus e a disputa pelo sentido da Escritura

Jesus viveu um conflito com a tradição religiosa de seu povo. Esse conflito dizia respeito, sobretudo, à interpretação da Escritura. O que vemos em diversos momentos dos evangelhos é Jesus disputando com líderes e peritos o sentido dos textos: 

— “ouviste o que vos foi dito; porém eu vos digo”. 

— “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado”. 

— “Negligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens”. 

Estes são exemplos de como estavam à disposição tradições interpretativas que eram ativadas por leituras e comunidades leitoras, e de como Jesus (segundo as comunidades leitoras representadas pelos evangelhos) se posicionou como intérprete. 

A Escritura é um espaço de tensão, marcado por certa pluralidade de tradições interpretativas. Jesus é um intérprete disputando o sentido dos textos sagrados, e Ele o faz assumindo certa tradição interpretativa e negando outras. O enfrentamento vivido por Jesus em relação àqueles líderes e peritos em Escritura marca seu lugar teológico, político e cultural. Em suma, marca sua tradição e o conjunto de memórias que a constituem. Jesus se insere numa tradição, ativando um conjunto de memórias que serão para Ele os óculos pelos quais lerá o texto e o mundo. 

Jesus, ao disputar com determinada classe político-religiosa, está retomando determinada memória de seu povo e constituindo com isso um novo imaginário social onde Ele passa a operar. O conflito vivenciado por Jesus acerca da tradição e da interpretação da Escritura pode, portanto, ser explicado pelo choque entre o conjunto de memórias que Ele evoca e aquele outro sustentado por seus opositores. A pregação de Jesus inseriu um conflito de memórias em sua sociedade, que significava mesmo o conflito na formação de imaginários sociais geradores de determinada perspectiva teológica. 

Como diz Márcia Maria Mendes Motta: 

A ideia de que numa sociedade há sempre várias memórias, muitas delas em disputa, é algo que deve ser lembrado, antes mesmo de nos indagarmos sobre os responsáveis pela transmissão de determinada lembrança (1). 

Esse conflito aponta para a importância que a memória tem na construção de identidade do grupo, e da interpretação de mundo e de textos — inclusive os textos sagrados. 

É imprescindível à tarefa teológica, antes mesmo de se debruçar sobre os textos bíblicos, marcar essa tensão entre a memória social na qual Jesus se inseriu e aquela outra em que os chefes do poder político-religioso de sua época se encontravam imersos e da qual se faziam representantes. Perceber essa tensão significa compreender que Jesus fez uma opção, e que sua opção comprometeu seus discípulos e discípulas em sua caminhada de fé, e em suas esperanças últimas. 

A opção por determinada memória está clara a partir do conjunto de textos/tradições que Jesus assume em sua pregação pública. Tomo como exemplo disso o Evangelho de Lucas. Nesse evangelho Jesus ativa um conjunto de textos/memórias e os faz de chave interpretativa de toda a realidade. Esses textos comprometem-no com uma tradição libertária que era reprimida no imaginário social de seu tempo pela opção político-teológica dos líderes de então. 

Os textos que compõe a memória do movimento de Jesus têm suas origens nos códigos deuteronômicos (Dt 15) e da aliança (Ex 21-23), sobretudo na perspectiva das reparações em relação às opressões sociais. O descanso da terra, a alforria dos escravos e escravas, a remissão das dívidas, o ano sabático… Todos estes elementos visavam a preservação dos israelitas empobrecidos, que por causa de dívidas contraídas e por taxas de juros exorbitantes, tinham sua dignidade aviltada até mesmo na radicalidade dos regimes de servidão. 

Justamente as relações econômicas entre israelitas privados, neste período bíblico, constituíam o principal mecanismo para a subjugação servil das pessoas… Em foco estão aí empréstimos de famílias pobres que não conseguiram uma colheita farta ou que foram prejudicados por problemas de saúde de catástrofes naturais ou de guerras… O pagamento da dívida, em geral, estava associado à cobrança de juros, por vezes, com taxas exorbitantes de até 40 a 60% ao ano (2). 

Esta memória, da qual Jesus se fará representante, nasce no meio do povo como expressão da graça de Deus. O código de Leis, não é, portanto, um fardo colocado sobre as costas de homens e mulheres, já fatigados. Ao contrário, ele é um elemento reparador da justiça. Portanto, a memória que surge a partir dela é uma memória libertária. 

Essa tradição libertária que nasce no código deuteronômico recebe a adesão de Jesus a partir da articulação do trito-Isaías (Is 61.1-2, 58.6). Esse hino profético-messiânico funciona como eixo de ligação entre as tradições acima citadas e a plataforma programática do ministério de Jesus apontada no Evangelho de Lucas. Para o seu tempo e para o tempo de Jesus, o “texto profético-messiânico de Isaías ativa a memória subversiva do ideal das leis sociais, sobretudo no que se refere ao ano sabático como um ano de libertação e de remissão” (Dt 15; Ex 21-23) (3). 

Como disse Carlos Mesters na apresentação do livro Tempos da Graça de Haroldo Reimer e Ivoni Richter Reimer: 

O jubileu aparece na Bíblia como um rio que atravessa a história do povo de Deus e, com o passar dos anos, vai crescendo em largura e volume. Este rio é formado por muitos afluentes que vêm de regiões e épocas distantes. 

Esse rio alcança em Jesus um novo afluente que pretende torná-lo ainda mais caudaloso. Jesus recebe a memória de seu povo e a incorpora, assumindo-a em sua própria existência. “Hoje se cumpriu essa Palavra” (Lc 4.21). Desta forma, a memória de seu povo, memória de justiça e de libertação, não é mais um elemento da história remota, mas antes uma proposta para o “hoje”. Dá-se, portanto, em Jesus, uma fusão de horizontes, uma reabilitação da memória comunitária que possibilitará um novo imaginário social fértil ao anúncio do Reino de Deus. 

Notas 

(1) MOTTA, Maria M.M. História e Memória . p.75.In História: Pensar e Fazer. Niterói. UFF.1992. 

(2) REIMER, Haroldo. REIMER, Ivoni Richter. Tempos de Graça: O Jubileu e as tradições jubilares na Bíblia. São Leopoldo.Sinodal.1999, p.84. 

(3) Ibidem, p.101. 

Graduado em Teologia e Filosofia, especialista em Educação e Ciências da Religião, mestre em Teologia e Literatura, doutor em Teologia, com pós-doutorado em Literatura. Foi diretor do Instituto Interdisciplinar de Leitura da PUC-Rio, pesquisador da Cátedra UNESCO da PUC-Rio, professor da FAECAD e da Faculdade Unida de Vitória e pastor da Igreja Batista em Itaipava.

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