Necroespiritualidade, necroteologia e os pecados de morte
[Por Jackson Augusto]
“Guias cegos! Coam um mosquito, mas engolem um camelo!” (Mt 23.24)
Falar de uma espiritualidade que gera a morte é começar pelas prioridades que nos comove. Será que na nossa espiritualidade cabe o corpo? Cabe a realidade? Cabe o território em que estamos inseridos? Qual é o motivo da nossa compaixão? O que move as nossas entranhas para servir o outro? O que nos choca? Ou nessa espiritualidade só o “sentir” está presente e não importa se um corpo hoje caiu sem vida na porta da igreja, pois o louvor foi impecável, foi poderoso? A palavra foi para mim, sabe? Deus falou exatamente o que eu queria!
Coar mosquito é justamente a banalização da nossa espiritualidade e do poder que temos nela! Do poder de libertação que existe na espiritualidade, no contexto do povo negro, ela e sua força sempre nos salvaram, independente da religião. Na revolta dos malês a espiritualidade negra dentro da experiência islâmica nos trouxe vida e esperança de liberdade; na revolução haitiana tínhamos o Vodu como maior expressão de motivação espiritual para a libertação e independência do povo negro; nos Estados Unidos, a igreja negra evangélica e sua espiritualidade foi responsável pela grande revolução dos direitos civis, e se tornou um dos braços mais fortes do movimento negro no país; e na África do Sul, as igrejas metodistas e anglicanas foram protagonistas e importantes para o fim do Apartheid, juntamente com Nelson Mandela, que vinha do metodismo. A espiritualidade tem uma força de emancipação quando se trata da perspectiva negra. Não podemos ignorar isto na história.
No contexto brasileiro, a espiritualidade tem sofrido com uma produção teológica que justifica a violência contra os corpos negros e marginalizados. Essa teologia que gera morte e interdita corpos já foi denunciada pelo próprio Cristo: “Ai de vocês, mestres da Lei e fariseus, hipócritas! Pois vocês lavam o copo e o prato por fora, mas por dentro estes estão cheios de coisas que vocês conseguiram pela violência e pela ganância.” (Mt 23.25).
Aqui no Brasil temos grandes nomes da teologia que aparelharam o governo Bolsonaro, seja no discurso de justificação de políticas de morte que estão sendo implementadas, seja de fato aceitando cargos e bradando que existem direitos humanos no Brasil, enquanto mecanismos de combate a tortura de corpos negros dentro dos presídios estão sendo fechados.
Jesus fala justamente de uma teologia a partir da violência e da ganância, para fins privados dos teólogos, mestres, pastores e instituições religiosas de sua época. Eles conseguiam através de uma boa aparência teológica justificar a violência e a ganância para acumular poder para os seus próprios interesses dentro da religião. Jesus condena também uma evangelização que produz discípulos que falam dessa mesma cultura de violência e ganância: “Ai de vocês, mestres da Lei e fariseus, hipócritas! Pois vocês atravessam os mares e viajam por todas as terras a fim de procurar converter uma pessoa para a sua religião. E, quando conseguem, tornam essa pessoa duas vezes mais merecedora do inferno do que vocês mesmos” (Mt 23.15)
No Brasil, NESSE EXATO momento, os reacionários que em sua maioria estão abraçando a teologia reformada de linha calvinista, estão refletindo bem o que é essa passagem. Hoje eles estão sendo convertidos a uma religião que gera morte, atraídos por uma necroteologia, produzindo uma necroespiritualidade, que não se importa com o outro, que justifica a violência, que persegue os profetas em todas as dimensões que denunciam as injustiças do sistema econômico, religioso e político-social. Jesus fala que a necroteologia e a necroespiritualidade perseguem, matam, crucificam e silenciam a missão profética da igreja: “Pois eu lhes mandarei profetas, homens sábios e mestres. Vocês vão matar alguns, crucificar outros, chicotear ainda outros nas sinagogas e persegui-los de cidade em cidade”. (Mt 23.24)
A necroteologia e a necroespiritualidade geram os pecados de morte (1 Jo 5.16, 17), que geram impactos na vida humana que jamais vão conseguir ser restaurados, e atravessam as histórias dos povos e culturas. Essas duas dimensões da fé morta agem em favor do extermínio de toda a criação e do ministério da reconciliação. Elas de fato são a raiz da impiedade, geram pessoas ímpias e são duas vezes mais infernais do que os fariseus e mestres da lei. No que toca o povo negro, lidamos com esses pecados de morte durante séculos e aprendemos que só uma coisa sobra da crucificação: a ressurreição. E a ressurreição mostra dentro da história que o povo negro aprendeu a ressuscitar e a sobreviver a todas as formas de morte e opressão.
A necroteologia e a necroespiritualidade não têm a última palavra sobre a nossa história. Queremos produzir uma teologia viva, que fale com o nosso território e nosso povo. Queremos uma espiritualidade onde o nosso corpo importa, o nosso contexto importa. Queremos construir uma igreja que seja serva de fato da missão de Cristo (Lc 4.18-20). Queremos a fé que traga vida e, mais do que isso, ressuscite a cada morte que nos é sentenciada. A morte não tem a última palavra nem sobre o corpo de Cristo nem sobre o povo negro. Eles, os donos das estruturas teológicas desse país, não têm o poder de legitimar nossa fé e muito menos nossa relevância no Reino de Deus. Que profetas não se calem porque ser perseguido, caluniado e crucificado pelas estruturas faz parte da missão. Nossa única tradição é a encarnação do Cristo ressurreto, que traz vida e vida em abundância.
Jackson Augusto é do colegiado do Movimento Negro Evangélico de Pernambuco, aluno da Escola de Fé e Política Martin Luther King, Jr e ativista da teologia negra no Brasil.
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