Orações periféricas #4: Síntese
Por meio dos poetas marginais desse Brasil, misturamos ritmo com uma pitada de fé, seja ela qual for. Aqui, o Rap é lido como um dia foi sentido. Ou mesmo, é arrepio de uma alma vagabunda, da qual se lê, mesmo sem saber. Sensação de escrita, sensação do som, sensação do céu. Assim é o Mistério ancestral que jogado à água salgada, nos brinda com uma bebida doce e amarga, banana com denúncia, Oshun e Iemanjá, Hare Cristo. “Ritmo e Poesia e Mística” é um projeto semanal onde a oração, a prece, o ponto e a reza da rua, se apresentam em comunhão com a vida, cultura e política das periferias do Brasil.
Se escute
Onde escorre lágrimas, existe vida
Coração, me faz sentir sua batida
Viver, não é tarde, covarde, eu não vou ser
É hora de mudar, de me cuidar, melhor, de me vencer e me violar
Pior não é morrer, é não viver e ter que respirar, já que viver é transpirar
Foda é viver sem ter nada pra inspirar!
Tá no mundo é se virar, sai do raso e vai pro fundo
Cuidado pra não afundar, já que é preciso se aprofundar
Mesmo se tudo inundar
Seu teto cair, ocê tem que tá ali
Sua casa pra erguer, seus irmãos pra salvar
Só depende de você e de você, você não pode esquecer
Como esquece, sempre, ao pensar que não merece
Não faz por merecer e desse jeito você não cresce!
Morte interna, somado a mortes externas
Fraqueza nas pernas, dores eternas, a alma enferma!
E a consciência quer que você se interna
Tá nem aí se você já sabe o que você tá fazendo aqui
Então decide. Não há coincidência onde nada coincide
Vai buscar na sua essência e ver se nela você reside
Se agride, descobre, a verdade não se encobre
É do pobre todo ouro, e na sua mão só vejo cobre!
Se cobre mais, viva mais, ore
Eleve sua mente até seu coração, chore
Lave seu rosto, se eleve em coro
Perdão: Seu ouro prometido a cura pro seu couro ferido
Em conflito com seu espírito ungido
Loucura, Murmura, é o grito, da autocondenação
Bendito seja o Senhor que deseja que você seja o seu senhor
Então, almeja, tudo de bom, tudo de ruim
Veja e ao perceber, mude! Radical e rude consigo mesmo
Sem pressa, e sem essa de Não Consigo Mesmo
A esmo, seria tudo, queria tudo, conseguiria
Seria mudo, e de nada valeria
Então, sorria, um pouco por você, pelo outro, lute
É parte de você, se escute
(Síntese. Álbum: Sem Cortesia, 2012. Música: Se escute)
Síntese é um grupo de rap do interior de São Paulo, São José dos Campos, que nasceu das rodas de freestyle, da coletividade entre amigos e um sentido espiritual que ultrapassava a matéria. Nomes como Moitão, Nego Max, Inglês, Distúrbio Verbal e a produtora Matrero, compõe o cenário de influências e histórias para a gestação de duas personalidades que formam o grupo: Neto e Leonardo Irian.
A partir de 2010 os dois começam a escrever de forma sistemática dando vida a inúmeras inquietações sociais e espirituais que passavam, apesar da pouca idade, naquela época. A vontade em decifrar o comportamento humano, a mediunidade, o contato extrassensorial ligado ao incômodo existencial, aproximam o Síntese de diversos místicos que a história conheceu.
Nas palavras de Neto – integrante que hoje leva o grupo sozinho – o sentimento envolto na criação do álbum duplo “Sem Cortesia” (2012), era de “um grito tão grande”, um ímpeto de “intervir na matéria” através do milagre que poderiam manipular com a música, que tudo se tornou complexo, a ponto de não saberem lidar com o mundo real. Neto relata também em uma entrevista que o erro foi pensar que a solução seria uma certa reclusão/saída do mundo, sendo até mesmo cogitado a entrada dos dois na Ordem Franciscana, mas que agora, entende que a prática da vida cotidiana representa os maiores traços de uma espiritualidade fora da “escravidão mental” que torna os seres humanos cegos à realidade imanente: “O que me amarra ao racional esbarra no espiritual”.
O sentimento observado em shows, a intensidade das letras e músicas, tornam o Síntese um lugar gerador de experiências religiosas que se estende à parcerias com outros Mc’s, a expansão de sua mensagem e a gravação de um novo álbum “Trilha para o Desencanto da Ilusão”, em 2016.
“Enquanto servirmos ao faraó, nunca sairemos do Egito”, Síntese